Independência Funcional: Entre o Livre Convencimento e a Censura - Uma Análise à Luz da Lei Orgânica da Magistratura

Por Danusa Andrade.
Publicado em 13/09/2024 às 20:51. Atualizado há um mês.

LogoJuiz Marco Aurélio Barreto Marques

Juiz Marco Aurélio Barreto Marques

Um magistrado que dispara reclamações disciplinares contra seus antecessores na unidade jurisdicional que preside, simplesmente por discordar das decisões que proferiram, adota uma postura que, embora não exista impedimento legal para tal proceder, sob um enfoque ético esse comportamento não escapa a uma análise crítica e técnica.

Em incontáveis processos que um juiz preside, mesmo por curto lapso temporal, ele pode ter a oportunidade de revogar decisões de colegas magistrados que o precederam, autorizado, naturalmente, pelos princípios do livre convencimento motivado e da continuidade da jurisdição. Contudo, é importante que se opere com parcimônia (cum grano salis) e que jamais se critique ou solicite qualquer medida censória à Corregedoria Geral de Justiça. Afinal, a independência funcional e a livre persuasão motivada permitem o dissenso de entendimentos a respeito de diversas questões jurídicas, sem que a discordância signifique infrações disciplinares.

Em respeito à independência intelectual do juiz, as reclamações contra seus atos, quando oriundas da própria magistratura, devem observar, em grau sobrelevado, a obediência à legalidade, aos preceitos de lógica jurídica, à apuração dos eventos processuais que ocorreram e à hierarquia de decisões ocorridas, salvo em caso de condutas aberrantes, nas quais será dever de qualquer magistrado levar prontamente o fato ao conhecimento do órgão censor.

Essa norma pode ser facilmente extraída das regras sobre a correição parcial no Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Maranhão (RI-TJ/MA). "A correição parcial, sob o aspecto de sua natureza jurídica, é reconhecida, de forma mais acentuada, como medida administrativa/disciplinar" STJ. AgRg. no AgRg. no REsp. 1038446/RJ. Relator: Ministro LUIZ FUX. Primeira Turma. Julgado em 14/06/2010. [*1].

Como é sabido, a correição parcial corrige "erros" ou "abusos" do juiz que provoquem a inversão tumultuária dos atos e fórmulas da ordem legal do processo, quando não houver recurso específico para o caso (art. 686 do RI-TJ/MA) [*2]. Se a situação comportar penalidade disciplinar, a câmara determinará a remessa dos autos ao Corregedor-Geral da Justiça para as providências cabíveis (art. 690 do RI-TJ/MA) [*3].

Com efeito, os erros processuais de juízes de primeira instância são corrigidos pelo recurso adequado, previsto em lei. Somente quando tais erros forem tumultuários e não houver recurso específico, devem ser levados ao conhecimento da instância superior por meio de medida correicional. Há toda uma lógica nesse regramento regimental. O ato do juiz que reclama, e que revoga decisão do colega, comporta recurso.

No cenário jurídico, um dos pontos de maior atenção e uma das questões mais sensíveis está relacionado à revisão de atos judiciais, especialmente quando essa correição é realizada dentro da própria magistratura. Em situações nas quais um juiz de primeira instância revoga decisões de outro magistrado, surgem questões que envolvem a competência jurisdicional e os limites dessa revisão.

A análise de atos saneadores à luz do art. 988 do CPC/2015 evidencia a importância de um cuidado redobrado ao lidar com reclamações que envolvem magistrados [*4]. Em situações em que decisões judiciais são regularmente substituídas por acórdãos em instâncias superiores, conforme o art. 1.008 do CPC/2015, pode-se questionar se o ato do magistrado reclamante não estaria ultrapassando a competência que lhe cabe [*5]. Tal conduta poderia, em alguns casos, caracterizar uma usurpação da competência da instância superior e colocar em xeque a autoridade das decisões já proferidas pelo Tribunal de Justiça. Assim, abre-se espaço para a reflexão sobre a possibilidade de equívocos ou abusos processuais, que podem, inclusive, configurar infrações disciplinares passíveis de apuração pelas corregedorias competentes.

A existência de recurso por parte de uma das partes interessadas, por si só, tem o potencial de gerar instabilidade no trâmite de reclamações entre magistrados. Isso se intensifica quando há a possibilidade de que o recurso demonstre equívocos no posicionamento do magistrado reclamante, o que resultaria em prejuízos não apenas à figura do magistrado substituído, mas também à própria credibilidade do sistema de justiça. Em tais casos, os danos podem se tornar irreversíveis, atingindo diretamente a integridade das decisões já tomadas e a imagem da justiça.

Ademais, situações desse tipo impõem desafios adicionais à prestação de informações aos órgãos correicionais, uma vez que, inevitavelmente, o magistrado substituído pode se ver obrigado a apontar eventuais incorreções no proceder de seu antecessor. Tal circunstância não apenas traz insegurança para a prestação jurisdicional como um todo, mas também coloca em risco a preservação da independência funcional dos magistrados, ao mesmo tempo em que cria um ambiente propício para o surgimento de teses jurídicas que podem suscitar desconfianças ou influenciar indevidamente o andamento do processo.

À luz dessa problemática, é pertinente considerar a adoção de mecanismos regulamentares mais criteriosos por parte das corregedorias, especialmente no que se refere às denúncias, reclamações, pedidos de providências ou representações apresentadas por magistrados de igual instância contra colegas de primeira instância. A normatização desses procedimentos poderia contribuir significativamente para evitar a insegurança jurídica nas decisões e, ao mesmo tempo, resguardar as garantias funcionais dos magistrados, que são pilares da independência do Poder Judiciário.

Esse fenômeno, onde o juiz que revoga a decisão inicial poderia estar interferindo na competência de instâncias superiores, levanta uma questão crítica: o risco de abuso processual e infração disciplinar. Quando o juiz que proferiu o ato questionado exerce seu direito de recurso, o simples fato de esse recurso ser interposto já gera instabilidade e, em muitos casos, prejudica a percepção de legitimidade da decisão anterior. Se o recurso demonstrar que houve erro por parte do juiz reclamante, o dano à imagem do magistrado cuja decisão foi revogada já estará consolidado, comprometendo não apenas sua atuação, mas também a credibilidade do sistema judicial como um todo.

Essa dinâmica entre magistrados gera um efeito colateral significativo: a insegurança na prestação jurisdicional. Ao revogar decisões e, posteriormente, apresentar reclamações ao órgão correicional, os juízes envolvidos ficam, muitas vezes, expostos a uma situação delicada e constrangedora, na qual precisam apontar eventuais falhas de seus colegas. Esse processo, além de minar a confiança entre magistrados, pode afetar a independência funcional dos mesmos, na medida em que suas decisões passam a ser objeto de frequente escrutínio e, potencialmente, de represálias indiretas.

Diante desse cenário, torna-se essencial refletir sobre a necessidade imperiosa de regulamentação mais clara e rigorosa por parte das Corregedorias de Justiça. A criação de procedimentos específicos para lidar com denúncias de irregularidades e reclamações entre magistrados da mesma instância, especialmente quando um sucede o outro no exercício da jurisdição, poderia minimizar os impactos negativos desse tipo dessas situações. Ao regulamentar tais práticas, a corregedoria poderia prevenir a insegurança jurídica nas decisões e garantir que o processo de correição de atos judiciais ocorra de forma harmoniosa, sem comprometer a independência dos magistrados e a estabilidade das decisões judiciais.

Em última análise, a salvaguarda da independência funcional dos juízes deve ser preservada, porém dentro de limites que assegurem o respeito à hierarquia judicial e à competência das instâncias superiores. Tal equilíbrio é fundamental para a manutenção da segurança jurídica e para a proteção da dignidade da função jurisdicional.

Da mesma forma que na correição parcial, em que a Câmara, ao final, vislumbrando erro judicial tumultuário, comunica a Corregedoria, o juiz de base, ao revogar decisões de outros colegas pelo chamamento do feito à ordem, deveria aguardar o resultado de eventual recurso para, somente então, promover a reclamação que julgar pertinente.

Em qualquer caso, seria fundamental que as eventuais comunicações à Corregedoria ocorressem de modo reservado, jamais constando no bojo da própria decisão saneadora, pois isso ofende, de imediato, a independência do colega (art. 95, CRFB) [*6], que não pode ser punido pelas decisões que profere nem pela forma como interpreta as normas jurídicas (art. 41 da LOMAN; arts. 93, IX e 95, ambos da CRFB e; art. 371 do CPC/2015) [*7] nos processos a que está vinculado. Além disso, tal prática gera desconfiança nas partes acerca da atuação do juiz substituído, resultando em insegurança jurídica.

O Colendo STJ, ao examinar um caso concreto em que um juiz de direito foi investigado e afastado de suas funções em razão de sua atividade judicante, censurou veementemente o comportamento adotado pelo Tribunal de origem. Trata-se do ROMS nº 5.203-6-AM, cuja ementa segue, ipsis litteris: "CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. JUIZ DE DIREITO. COLOCAÇÃO EM DISPONIBILIDADE EM VIRTUDE DE DECISÃO PROFERIDA EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO INTERPOSTOS DE SENTENÇA CONDENATÓRIA POR TRÁFICO DE DROGAS. LIVRE CONVENCIMENTO/INDEPENDÊNCIA DO JUIZ NA INTERPRETAÇÃO DA LEI. GARANTIA CONSTITUCIONAL IMPLÍCITA. TEMPESTIVIDADE DE REPRESENTAÇÃO DE CPI. RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. I – O presidente da CPI do Narcotráfico, da Câmara dos Deputados, fez ofício ao Presidente do TJAM, noticiando que o nome do Defendente, juiz de direito, havia sido ventilado em processo envolvendo narcotraficantes: o magistrado, em embargos declaratórios, determinou a soltura dos condenados, inobstante a vedação expressa da Lei de Tóxicos. Pediu fosse o fato apurado pela Corregedoria. Colocado em disponibilidade, o juiz aforou mandado de segurança, aduzindo, em preliminar, que o pedido da CPI foi feito a destempo (Lei de Organização Judiciária do Estado do Amazonas, art. 26). No mérito, ponderou que os réus (traficantes) tinham respondido ao processo em liberdade por decisão de outro juiz. A decisão proferida nos embargos foi para corrigir falha na sentença condenatória: possibilidade de os réus continuarem em liberdade para apelar. II – A competência para legislar sobre processo é da União. O Estado-Membro só legisla sobre "procedimento" (Carta de 69 e Constituição de 88. art. 24, XI). Assim, tempestivo foi o pedido da CPI. III – A Constituição brasileira, diferentemente de outras Constituições estrangeiras (Portugal e Alemanha) que são explícitas, consagra implicitamente o "princípio da independência" do juiz. Desse modo, O MAGISTRADO, AINDA QUE POSSA TER AGIDO COM OUTRAS INTENÇÕES, NÃO TINHA COMO SER PUNIDO POR INTERPRETAÇÃO DE NORMA LEGAL. No caso concreto, os narcotraficantes se achavam em liberdade por decisão de outro juiz. Pouco interessa tenha a sentença sido omissa, e muito menos tenha havido correção inadequada em embargos declaratórios. A INDEPENDÊNCIA DO JUIZ E SUA LIVRE CONVICÇÃO SÃO ERIGIDAS MUITO MAIS EM PROTEÇÃO DO JURISDICIONADO DO QUE DO MAGISTRADO. ONDE NÃO EXISTE JUIZ LIVRE – QUE EM TESE PODE COMETER ABUSOS – PROSPERA A AUTOCRACIA E FENECE A LIBERDADE. IV – Recurso ordinário conhecido e provido." [*8]

Invoca-se, ainda, pela sua inteira pertinência com o tema, o Estatuto Universal do Juiz, aprovado na reunião do Conselho Central da União Internacional de Magistrados em Taipei (Taiwan), em 17 de novembro de 1999 (disponível em: [http://www.uijlp.org/docs/Estatuto-Universal-do-Juiz.pdf] – acesso em 27.04.2021) [*9].

Destacam-se os seguintes dispositivos:

Artigo 1.º

Independência.

(...)

"A independência do Juiz resulta indispensável para o exercício de uma justiça imparcial no respeito pela lei. A independência é indivisível. Todas as instituições e autoridades, nacionais ou internacionais, deverão respeitar, proteger e defender esta independência".

Artigo 2.º

(...)

Estatuto.

"A independência do Juiz deve estar garantida por uma lei específica, que lhe assegure uma independência real e efetiva relativamente aos demais poderes do Estado. O Juiz, como depositário da autoridade judicial, deverá poder exercer as suas funções com total independência relativamente a todas as forças sociais, económicas e políticas, e independentemente dos demais juízes e da administração da justiça".

Também são pertinentes ao caso as admoestações do Conselheiro BRUNO DANTAS, no Processo Administrativo Disciplinar nº 0003752-24.2011.2.00.0000, do Colendo Conselho Nacional de Justiça, in verbis: "Nos termos da Constituição Federal, os juízes gozam de garantias para que possam desempenhar suas atribuições com independência e desassombro (art. 95). Portanto, no espaço constitucional e legalmente delimitado, o magistrado tem ampla autonomia na prestação jurisdicional, não podendo a sua atividade ser limitada ou afetada por seus entendimentos jurídicos, pena de se consagrar no país o odioso "crime de hermenêutica".

O exercício diuturno das funções correicionais do CNJ tem desnudado parâmetros seguros para se distinguir os errores in judicando, que são ínsitos à atividade de julgar, do agir doloso de uma minoria de maus juízes, que travestem em entendimentos jurídicos convenientemente adotados suas intenções criminosas.

Cabe registrar que, ainda que a decisão do juiz fosse teratológica, não haveria que se falar em violação de dever funcional. É o que sustenta a Eminente Ministra NANCY ANDRIGHI, Conselheira que, inclusive, foi Corregedora do CNJ e que é ponto referência em decisões judiciais, por primar pela boa Justiça e técnica processual. Em caso similar, manifestou-se da seguinte forma, in verbis: "Ausência de infringência aos deveres funcionais pela própria teratologia da decisão judicial ou pelo contexto em que proferida." (CNJ - PP 0004019-54.2015.2.00.0000, Relatoria de NANCY ANDRIGHI, 13ª Sessão Virtual).

De fato, a eventual instauração de sindicância ou processo disciplinar violaria o art. 41 da LOMAN, além de contrariar jurisprudência expressa, infringindo o preceito constitucional da independência judicial. O STJ, a LOMAN e a CRFB/88 asseguram que o magistrado não pode ser punido pelas decisões que profere nem pelas interpretações de normas jurídicas que adota no exercício de sua função jurisdicional.

Ademais, como é sabido, tanto invocações de error in judicando quanto de error in procedendo não se prestam a desencadear atividade censória, salvo exceções pontualíssimas, nas quais se perceba, ictu oculi, a violação de deveres funcionais em razão da própria teratologia da decisão judicial ou do contexto em que foi proferida, o que também não se verifica no presente caso.

Por outro lado, embora o art. 35, I, da LOMAN inclua entre os deveres do magistrado o de "cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício", esse mesmo dispositivo confere ao juiz o direito de exercer sua função com independência e liberdade de convencimento (art. 371, CPC), o que é reforçado pelo art. 93, IX, da Constituição Federal [*10].

Com isso, objetiva-se, em última análise, garantir a autonomia do próprio Poder Judiciário, assegurada pelo art. 95 da Constituição Federal, conforme o escólio abalizado de ALEXANDRE DE MORAES (Constituição do Brasil Interpretada, 5ª ed., São Paulo, Atlas, 2005, p. 1362): in verbis: "As garantias conferidas aos membros do Poder Judiciário têm assim como condão conferir à instituição a necessária independência para o exercício da Jurisdição, resguardando-a das pressões do Legislativo e do Executivo, não se caracterizando, pois, os predicamentos da magistratura como privilégios, mas como meio de assegurar seu livre desempenho, de molde a revelar a independência e a autonomia do Judiciário."

Conforme já decidiu o Colendo Conselho Nacional de Justiça, por meio da Revisão Disciplinar nº 33 (processo eletrônico tombado sobre o nº 200830000000760), as decisões proferidas pelo magistrado, no regular exercício de sua função e de acordo com seu convencimento pessoal sobre as matérias decididas, não podem constituir infrações disciplinares, ainda que possam configurar error in judicando ou estar equivocadas. Da ementa do referido julgado, extrai-se o seguinte trecho elucidativo, in verbis: ..."3. MAGISTRADO. DESCUMPRIMENTO DE DEVER FUNCIONAL. ART. 35, I, DA LOMAN. INEXISTÊNCIA. REGULAR EXERCÍCIO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. ERROR IN JUDICANDO.O juiz tem o dever legal de observar as suas obrigações, no que se inclui "cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício" (LOMAN, art. 35, I). É lhe assegurado, todavia, o exercício da função com liberdade de convencimento (CPC/2015, art. 371) e independência, de modo a garantir, em última análise, a autonomia e a independência do próprio Poder Judiciário. Constatado, no caso concreto, que, conquanto se possa considerar equivocada a decisão que condenou terceiro não integrante da relação processual, o ato em questão foi praticado de acordo com a convicção do magistrado sobre a matéria. Não há falar, portanto, em descumprimento de dever funcional e de responsabilização do magistrado."

Cabe ainda invocar as palavras de Rui Barbosa, brilhantemente citadas pelo Eminente Ministro LUIZ FUX, que é ponto de referência em decisão judicial, que prima pela boa Justiça e técnica processual, ao relatar a RP 357-SP, Corte Especial, j. 16/05/2007, DJU 04/06/2007: in verbis: "Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do Direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema dos recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo." (Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, Tomo III, pág. 228) [*11].

A independência funcional dos magistrados é um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito, sendo imprescindível para a preservação da imparcialidade e autonomia da jurisdição. A Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN) e a Constituição Federal garantem ao juiz a liberdade de decidir conforme seu livre convencimento motivado, assegurando que este não será punido ou censurado pelas decisões que proferir no exercício legítimo de suas funções.

Contudo, essa independência, longe de se configurar como absoluta, deve ser acompanhada de um elevado grau de responsabilidade ética e técnica. Quando decisões judiciais ultrapassam os limites do razoável, gerando desordem processual ou prejudicando os direitos das partes, cabe às instâncias superiores ou correicionais intervir, sempre com o devido cuidado para que essa atuação não resvale em qualquer forma de censura arbitrária. A busca pelo equilíbrio entre a liberdade decisória do magistrado e a devida responsabilização é fundamental para garantir a integridade do sistema judiciário.

Como exposto, o respeito à hierarquia e ao ordenamento jurídico deve ser o norte de qualquer reclamação envolvendo magistrados. A tentativa de censura a decisões judiciais, sem que se esgotem os mecanismos recursais previstos em lei, compromete a estabilidade da jurisdição e mina a confiança do jurisdicionado no sistema de justiça. Para evitar tais problemas, a comunicação de reclamações entre magistrados deve ser conduzida de maneira criteriosa e reservada, de modo a preservar a integridade e a independência do juiz substituído, conforme os preceitos estabelecidos pela legislação vigente.

Dessa forma, o reconhecimento da independência funcional precisa vir acompanhado de uma atuação prudente, tanto dos magistrados quanto das corregedorias, sempre respeitando os preceitos éticos e normativos que orientam a atividade jurisdicional. Somente assim será possível promover a harmonia entre a liberdade de decisão do magistrado e a necessária segurança jurídica, assegurando a manutenção da justiça e a confiança pública no Poder Judiciário.

A independência funcional dos magistrados, embora seja um pilar fundamental do Estado Democrático de Direito, não pode ser interpretada como um cheque em branco para decisões arbitrárias ou desconectadas do ordenamento jurídico. É necessário um equilíbrio delicado entre a liberdade decisória e a responsabilidade inerente ao cargo.

Nesse sentido, é importante ressaltar que a independência judicial não exime o magistrado de suas responsabilidades éticas e profissionais. O Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça, estabelece diretrizes claras sobre o comportamento esperado dos juízes, incluindo a necessidade de imparcialidade, integridade e prudência em suas decisões [*12].

A questão da revisão de decisões judiciais por magistrados de mesma instância levanta preocupações legítimas sobre a estabilidade e a segurança jurídica. Quando um juiz revoga decisões de seu antecessor e, em seguida, apresenta reclamações disciplinares, cria-se um ambiente de insegurança que pode comprometer a confiança no sistema judicial como um todo. Para mitigar esses riscos, é fundamental que as Corregedorias de Justiça estabeleçam protocolos claros e rigorosos para lidar com reclamações entre magistrados. Esses protocolos devem priorizar a resolução de conflitos por meio de canais internos e reservados, evitando a exposição desnecessária de divergências que possam minar a credibilidade do Judiciário.

Além disso, é crucial que os tribunais superiores reforcem, por meio de suas decisões e orientações, a importância do respeito à independência funcional dos magistrados. Isso não significa tolerar erros ou abusos, mas sim garantir que a correção de eventuais equívocos ocorra pelos meios apropriados, como os recursos previstos em lei.

A formação continuada dos magistrados também desempenha um papel importante nesse contexto. Programas de capacitação que abordem não apenas aspectos técnicos do direito, mas também questões éticas e comportamentais, podem contribuir para uma magistratura mais consciente de seu papel e das implicações de suas decisões.

Por fim, é importante lembrar que a independência judicial não existe como um fim em si mesma, mas como uma garantia para a sociedade de que terá acesso a um julgamento justo e imparcial. Portanto, qualquer discussão sobre os limites dessa independência deve ter como norte o interesse público e a preservação do Estado Democrático de Direito.

Em conclusão, o equilíbrio entre a independência funcional e a responsabilidade dos magistrados é um desafio constante que requer atenção contínua de todos os atores do sistema de justiça. Somente através de um esforço conjunto e de um diálogo construtivo será possível manter a integridade do Poder Judiciário, assegurando ao mesmo tempo a liberdade decisória dos juízes e a confiança da sociedade na administração da justiça.

Marco Aurélio Barrêto Marques

Juiz de Direito

Pós-Graduado Lato Senso em Direito Civil e Processual Civil pela FGV.

[*1]: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no AgRg no REsp 1038446/RJ. Relator: Ministro Luiz Fux. Primeira Turma. Julgado em 14/06/2010.

[*2]: MARANHÃO. Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Maranhão (RI-TJ/MA). São Luís: Tribunal de Justiça do Maranhão, art. 686.

[*3]: Ibid., art. 690.

[*4]: BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015, art. 998.

[*5]: Ibid., art. 1.008.

[*6]: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988, art. 95.

[*7]: BRASIL. Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979. Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN). Brasília, DF: Presidência da República, 1979, art. 41; BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988, arts. 93, IX e 95; BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015, art. 371.

[*8]: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ROMS nº 5.203-6-AM.

[*9]: UNIÃO INTERNACIONAL DE MAGISTRADOS. Estatuto Universal do Juiz. Taipei, 1999. Disponível em: http://www.uijlp.org/docs/Estatuto-Universal-do-Juiz.pdf. Acesso em: 27 abr. 2021.

[*10]: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988, art. 93, IX.

[*11]: BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXIII, Tomo III, p. 228.

[*12]: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Código de Ética da Magistratura Nacional. Aprovado na 68ª Sessão Ordinária do Conselho Nacional de Justiça, do dia 06 de agosto de 2008, nos autos do Processo nº 200820000007337.